terça-feira, 6 de março de 2012

Vicente - Miguel Torga

Naquela tarde, à hora em que o céu se mostrava mais duro e mais sinistro, Vicente abriu as asas negras e partiu. Quarenta dias eram já decorridos desde que, integrado na leva dos escolhidos, dera entrada na Arca. Mas desde o primeiro instante que todos viram que no seu espírito não havia paz. Calado e carrancudo, andava de cá para lá numa agitação contínua, como se aquele grande navio onde o Senhor guardara a vida fosse um ultraje à criação. Em semelhante balbúrdia - lobos e cordeiros irmanados no mesmo destino -, apenas a sua figura negra e seca se mantinha inconformada com o procedimento de Deus. Numa indignação silenciosa, perguntava:- a que propósito estavam os animais metidos na confusa questão da torre de Babel? Que tinham que ver os bichos com as fornicações dos homens, que o Criador queria punir? Justos ou injustos, os altos desígnios que determinavam aquele dilúvio batiam de encontro a um sentimento fundo, de irreprimível repulsa. E, quanto mais inexorável se mostrava a prepotência, mais crescia a revolta de Vicente.



Quarenta dias, porém, a carne fraca o prendeu ali. Nem mesmo ele poderia dizer como descera do Líbano para o cais de embarque e, depois, na Arca, por tanto tempo recebera das mãos servis de Noé a ração quotidiana. Mas pudera vencer-se. Conseguira, enfim, superar o instinto da própria conservação, e abrir as asas de encontro à imensidão terrível do mar.



A insólita partida foi presenciada por grandes e pequenos num respeito calado e contido. Pasmados e deslumbrados, viram-no, temerário, de peito aberto, atravessar o primeiro muro de fogo com que Deus lhe quis impedir a fuga, sumir-se ao longe nos confins do espaço. Mas ninguém disse nada. O seu gesto foi naquele momento o símbolo da universal libertação. A consciência em protesto activo contra o arbítrio que dividia os seres em eleitos e condenados.



Mas ainda no íntimo de todos aquele sabor de resgate, e já do alto, larga como um trovão, penetrante como um raio, terrível, a voz de Deus:



- Noé, onde está o meu servo Vicente?



Bípedes e quadrúpedes ficaram petrificados. Sobre o tombadilho varrido de ilusões, desceu, pesada, uma mortalha de silêncio.



Novamente o Senhor paralisara as consciências e o instinto, e reduzia a uma pura passividade vegetativa o resíduo da matéria palpitante.



Noé, porém, era homem. E, como tal, aprestou as armas de defesa.



- Deve andar por aí...Vicente! Vicente! Que é do Vicente?!...



Nada.



- Vicente!...Ninguém o viu? Procurem-no!



Nem uma resposta. A criação inteira parecia muda.



- Vicente! Vicente! Em que sítio é que ele se meteu?



Até que alguém, compadecido da mísera pequenez daquela natureza, pôs fim à comédia.



- Vicente fugiu...



- Fugiu? Fugiu como?



- Fugiu...Voou...



Bagadas de suor frio alagaram as têmporas do desgraçado. De repente, bambearam-lhe as pernas e caiu redondo no chão.



Na luz pardacenta do céu houve um eclipse momentâneo. Pelas mãos invisíveis de quem comandava as fúrias, como que passou, rápido, um estremecimento de hesitação.



Mas a divina autoridade não podia continuar assim, indecisa, titubeante, à mercê da primeira subversão. O instante de perplexidade durou apenas um instante. Porque logo a voz de Deus ribombou de novo pelo céu imenso, numa severidade tonitruante.



- Noé, onde está o meu servo Vicente?



Acordado do desmaio poltrão, trémulo e confuso, Noé tentou justificar-se.



- Senhor, o teu servo Vicente evadiu-se. A mim não me pesa a consciência de o ter ofendido, ou de lhe haver negado a ração devida. Ninguém o maltratou aqui. Foi a sua pura insubmissão que o levou... Mas perdoa-lhe, e perdoa-me também a mim... E salva-o, que, como tu mandaste, só o guardei a ele...



- Noé!...Noé!...



E a palavra de Deus, medonha, toou de novo pelo deserto infinito do firmamento. Depois, seguiu-se um silêncio mais terrível ainda. E, no vácuo em que tudo parecia mergulhado, ouvia-se, infantil, o choro desesperado do Patriarca, que tinha então seiscentos anos de idade.



Entretanto, suavemente, a Arca ia virando de rumo. E a seguir, como que guiada por um piloto encoberto, como que movida por uma força misteriosa, apressada e firme - ela que até ali vogara indecisa e morosa ao sabor das ondas -, dirigiu-se para o sítio onde quarenta dias antes eram os montes da Arménia.



Na consciência de todos a mesma angústia e a mesma interrogação. A que represálias recorreria agora o Senhor? Qual seria o fim daquela rebelião?



Horas e horas a Arca navegou assim, carregada de incertezas e terror. Iria Deus obrigar o corvo a regressar à barca? Iria sacrificá-lo, pura e simplesmente, para exemplo? Ou que iria fazer? E teria Vicente resistido à fúria do vendaval, à escuridão da noite e ao dilúvio sem fim? E, se vencera tudo, a que paragens arribara? Em que sítio do universo havia ainda um retalho de esperança?



Ninguém dava resposta às próprias perguntas. Os olhos cravavam-se na distância, os corações apertavam-se num sentimento de revolta impotente, e o tempo passava.



Subitamente, um lince de visão mais penetrante viu terra. A palavra, gritada a medo, por parecer ou miragem ou blasfémia, correu a Arca de lés a lés como um perfume. E toda aquela fauna desiludida e humilhada subiu acima, ao convés, no alvoroço grato e alentador de haver ainda chão firme neste pobre universo.



Terra! Nem planaltos, nem veigas, nem desertos. Nem mesmo a macicez tranquilizadora dum monte... Mas bastava. Para quantos o viam, o pequeno penhasco resumia a grandeza do mundo. Encarnava a própria realidade deles, até ali transfigurados em meros fantasmas flutuantes. Terra! Uma minúscula ilha de solidez no meio dum abismo movediço, e nada mais importava e tinha sentido.



Terra! Desgraçadamente, a doçura do nome trazia em si um travor. Terra...Sim, existia ainda o ventre quente da mãe. Mas o filho? Mas Vicente, o legítimo fruto daquele seio?



Vicente, porém, vivia. À medida que a barca se aproximava, foi-se clarificando na lonjura a sua presença esguia, recortada no horizonte, linha severa que limitava um corpo, e era ao mesmo tempo um perfil de vontade.



Chegara! Conseguira vencer! E todos sentiram na alma a paz da humilhação vingada.



Simplesmente, as águas cresciam sempre, e o pequeno outeiro, de segundo a segundo, ia diminuindo.



Terra! Mas uma porção de tal modo exígua, que até os mais confiados a fixavam ansiosamente, como a defendê-la da voragem. A defendê-la e a defender Vicente, cuja sorte se ligara inteiramente ao telúrico destino.



Ah, mas estavam "rotas as fontes do grande abismo e abertas as cataratas do céu!" E homens e animais começaram a desesperar diante daquele submergir irremediável do último reduto da existência activa. Não, ninguém podia lutar contra a determinação de Deus. Era impossível resistir ao ímpeto dos elementos, comandados pela sua implacável tirania.



Transida, a turba sem fé fitava o reduzido cume e o corvo pousado em cima. Palmo a palmo, o cabeço fora devorado. Restava dele apenas o topo, sobre o qual, negro, sereno, único representante do que era raiz plantada no seu justo meio, impávido, permanecia Vicente. Como um espectador impessoal, seguia a Arca que vinha subindo com a maré. Escolhera a liberdade, e aceitara desde esse momento todas as consequências da opção. Olhava a barca, sim, mas para encarar de frente a degradação que recusara.



Noé e o resto dos animais assistiam mudos àquele duelo entre Vicente e Deus. E no espírito claro ou brumoso de cada um, este dilema, apenas: ou se salvava o pedestal que sustinha Vicente, e o Senhor preservava a grandeza do instante genesíaco - a total autonomia da criatura em relação ao criador -, ou, submerso o ponto de apoio, morria Vicente, e o seu aniquilamento invalidava essa hora suprema. A significação da vida ligara-se indissoluvelmente ao acto de insubordinação. Porque ninguém mais dentro da Arca se sentia vivo. Sangue, respiração, seiva de seiva, era aquele corvo negro, molhado da cabeça aos pés, que, calma e obstinadamente, pousado na derradeira possibilidade de sobrevivência natural, desafiava a omnipotência.



Três vezes uma onda alta, num arranco de fim, lambeu as garras do corvo, mas três vezes recuou. A cada vaga, o coração frágil da Arca, dependente do coração resoluto de Vicente, estremeceu de terror. A morte temia a morte.



Mas em breve se tornou evidente que o Senhor ia ceder. Que nada podia contra àquela vontade inabalável de ser livre.



Que, para salvar a sua própria obra, fechava, melancolicamente, as comportas do céu.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

É preciso andar distraído...

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles.
Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles.
Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração.
Como eles admiravam estarem juntos!
Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos."



Clarice Lispector

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Torna-te quem tu és!






Dezembro é inevitável. Por mais envolvidos no turbilhão gerado pela expectativa de mais um final de ano, sempre rola a famosa retrospectiva. E lá vamos nos recorrer ao bom e velho bloquinho de notas da memória, verificar entre risos e lágrimas o balanço final.


Entre as fatias da nossa pizza, vamos contabilizar as oportunidades profissionais, os lugares que descobrimos,  amigos que ganhamos, os que perdemos ou se perderam em alguma curva... palavras ditas, pedras atiradas, amores pela metade, amores recorrentes... sorrisos, suspiros, lágrimas, latidos e uivos.

É. Tarefa complicadinha essa. Isso porque nem sempre olhar para trás é seguro - Requer coragem, determinação e disposição para uma revista interna. Olhar no espelho além da imagem refletida, pode nos tirar da zona de conforto e do prumo. Pode gerar ansiedade, arrepios, choros inexplicáveis e repentinos. Pode nos levar a lugares que nunca estivemos. Cruzar barreiras, fronteiras, portas. Pode construir pontes. Pode derrubá-las – Pode ser que você nunca mais seja o mesmo(a).

Entretanto, esses ‘rituais” são de grande importância pois nos proporcionam crescimento. Essa nova casca quando gerada a partir de um sentimento de aceitação da verdade, nos conecta com nossa natureza mais selvagem. Nos conecta com quem somos. Cura e liberta. Faz retornar a vontade original e inocente presente nas crianças. Nos faz andar mais leves, perdoar, rir de si mesmo e ansiar o momento em que a chuva caia...


Neste final de ano, desejo que sua alma mergulhe no espelho, e lhe apresente uma pele novinha em folha!

sábado, 16 de outubro de 2010

Pequena história de (des)amor

Eles se conheceram em fevereiro, era carnaval. Divertiram-se muito embriagados de samba e harmonia. Correram no salão como quem tem pressa pra ser feliz. Abraçaram e beijaram-se como se nunca o tivessem feito antes. Grudaram-se como seiva de bananeira.

Foram vivendo e aprendendo a se amar e odiar. Aprenderam como era conviver com alguém que divide quase tudo, tolerar quando não se queria dividir nada, e acalmar quando nada mais podia ser feito.

Eles diziam estar apaixonados. Ela dizia que ele era tudo que sonhava. Ele dizia que queria se casar. Ela dizia que iria envelhecer ao seu lado, ele dizia que queria ter filhos.

Ele dizia vamos construir castelos, ela dizia não vamos derrubá-los. Ele dizia conquistamos um sonho, ela dizia, cuidado que nosso sonho pode virar pesadelo. Ele dizia, praia, ela campo.

Ele pegava a direita, ela dizia, porque você pegou a direita? Ela dizia porra, pega a esquerda, ele dizia, caralho tu não sabe onde é! Ela dizia tu sempre te perde. Ele dizia, lá vem tu com esse papo. Ela dizia corno. Ele palhaça.

Eles se amaram e se amarraram por longos anos. Viveram como que uma vida toda um ao lado do outro.

Ele dizia nós somos dois bicudos. Ela dizia é só não ficarmos frente à frente. Ele dizia não sinto, ela dizia sinto muito.

Ela foi pra esquerda. Ele foi pra direita.

Eles se desconheceram em agosto, era sexta-feira 13.

By Luz Chaves

segunda-feira, 22 de março de 2010


JOAQUÍN PASOS

(1914-1947)








POEMA EN PIE

¿Qué actitud, qué gallarda pose original se puede tomar
ante la proximidad de este poema?
Te lo pregunto a ti, ¡Oh hábil diseñadora de nuevas sonrisas!
         la única
que puede ofrecerme en un plan de cinco minutos la más
          conveniente arquitectura de mi genio actual.

Decían los maestros chinos de la dulce poesía
que el poeta quedaba enfermo y ojeroso después del transe
         amargo;
pero yo te suplico, bondadosa musilla de ojos ingenuos
que no hagas que mi miel sea elaborada a cosas de mi
         sangre,
porque mucha sangre se ha desperdiciado últimamente y
         andan escasos de leche los pechos de las madres.

Un poema que sale a pie, y como está inédito, yo le digo:
         Hasta que te vea te creo,
Pretendo primero, sacudirme de encima estas alas de ángel
         que me agobian,
a ver si botando todas esa pluma quedo con la ternura
         virginal del pollo
o siquiera con algo de ese equilibrio inestable de lo que
         da risa,
tan lleno de emoción y de lágrimas como el cristal que
         ya va a caer
y no cae, peo que sabe que ya va a caer.



LOS INDIOS VIEJOS

Los hombres viejos, muy viejos, están sentados
junto a sus cabras, junto a sus pequeños animales mansos.
Los hombres viejos están sentados junto un río
que siempre va despacio.
Ante ellos el aire detiene su marcha,
el viento pasa, contemplándolos,
los toca con cuidado
para no desbaratarles sus corazones de ceniza.

Los hombres viejos sacan al campo sus pecados,
Éste es su único trabajo.
Los sueltan durante el día, pasan el día olvidando,
y en la tarde salen a lazarlos
para dormir con ellos calentándose.


CANTO DE GUERRA DE LAS COSAS

(fragmentos)

Cuando lleguéis a viejos, respetaréis la piedra,
si es que llegáis a viejos,
si es que entonces quedó alguna piedra.
Vuestros hijos amarán al viejo cobre,
al hierro fiel.
Recibiréis a los antiguos metales en el seno de vuestras familias,
trataréis al noble plomo con la decencia que corresponde a su
carácter dulce;
os reconciliaréis con el zinc dándole un suave nombre;
con el bronce considerándolo como hermano del oro,
porque el oro no fue a la guerra por vosotros,
el oro se quedó, por vosotros, haciendo el papel de niño mimado,
vestido de terciopelo, arropado, protegido por el resentido acero...
Cuando lleguéis a viejos, respetaréis al oro,
si es que llegáis a viejos,
si es que entonces quedó algún oro.

El agua es la única eternidad de la sangre.
Su fuerza, hecha sangre. Su inquietud, hecha sangre.
Su violento anhelo de viento y cielo,
hecho sangre.
Mañana dirán que la sangre se hizo polvo,
mañana estará seca la sangre.
Ni sudor, ni lágrimas, ni orina
pondrán llenar el hueco del corazón varío.

(...)

Todos los ruidos del mundo forman un gran silencio.
Todos los hombres del mundo forman un solo espectro.
En medio de este dolor, ¡soldado!, queda tu puesto
vacío o lleno.
Las vidas de los que quedan están con huecos,
tienen vacíos completos,
como si se hubieran sacado bocados de carne de sus cuerpos.
Asómate a este boquete, a este que tengo en el pecho,
para ver cielos e infiernos.
Mira mi cabeza hendida por millares de agujeros:
a través brilla un sol blanco, a través un astro negro.
Toca mi mano, esta mano que ayer sostuvo un acero:
puedes pasar en el aire, a través de ella, tus dedos!
He aquí la ausenda del hombre, la ausenda de carne, miedo,
días, cosas, almas, fuego.
Todo se quedó en el tiempo. Todo se quemó allá lejos.



domingo, 7 de março de 2010

Bom conselho - Chico Buarque - 1972

Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa
Espere sentado
Ou você se cansa
Está provado, quem espera nunca alcança

Venha, meu amigo
Deixe esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar
Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes antes de pensar

Corro atrás do tempo
Vim de não sei onde
Devagar é que não se vai longe
Eu semeio vento na minha cidade
Vou pra rua e bebo a tempestade


quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Fábulas

Por Mauro Siqueira
.
Ela era uma princesa, como muitas dessas por aí... a sua adversidade era a de dormir e dormir e dormir (narcolepsia?) até que o Belo Príncipe a despertasse com o beijo sincero do amor sincero. Anos e anos se passaram até que o tal se apresentasse, era o ano de 2009.
Observou as heras e vinhas, espinhos, liquens, musgos que guardavam o seu catre. Uma menina inocente. Ele se aproximou e ficou fatalmente encantado, tocou-lhe o rosto sereno com cuidado... o cabelo louro numa mecha crescida cobria os olhos e descia até tocar o chão de um mármore agora velho. Com a ponta dos dedos, tocou-lhe os lábios róseos com cuidado: parecia... morta. Deu tapinhas no rosto. Parecia morta. Mais fortes. Parecia morta. “Ei?” Parecia morta. A bela princesa era muito bonita e bem feita. Parecia morta. (narcolepsia?) Suas roupas fora de moda estavam apertadas e gastas, rasgando e puindo em várias partes – os ombros e braços à mostra, os tornozelos e canelas, o colo à mostra. A princesa crescera naquele cárcere de panos e rendas.
O Belo Príncipe nunca amara, nunca tivera um amor vivo (necrofilia?), ninguém desse mundo lhe dava prazer (necrofilia?) saiu aí, no mundo, numa busca muda e intempestiva, no seu Mustang® branco.
Tocou-a, quase sem tocar, apenas passeando com a mão, os ombros, os braços, os tornozelos, as canelas, parecia morta. Parecia morta... Passou a sua mão mais uma vez por aquele rosto cândido e aqueles lábios pios; inclinou-se, quase lhe tocando, disse no afã de ser ouvido: “I wish I could eat the salt of your lost and fading lips.”
O som que fazia era excitante: as roupas praticamente se desfaziam ao toque de tão velhas que estavam: tocou-lhe os seios. E todo o resto. (Mas não lhe deu nenhum beijo.)
Como num arpejo, seus movimentos, não simultâneos, mas muito sincronizados e disciplinados davam contam dos seus intentos – afinal, era um príncipe. Não parou até os homens de branco do sanatório perceberam mais uma vez a ausência dele, o necrófilo, e irromperem pelo quarto da menina narcoléptica e o arrancarem com autoridade e vigor de lá, não sem muita diligência e trâmite, aplicando inúmeras seringas no seu pescoço e braços até ele adormecer.
A bela, ali adormecida, não acordou. Já não era mais uma princesa inocente, cândida e pura e... e aquela lágrima que brotara silenciosa, tão muda quanto ela, não podia dizer nada, deixando àqueles que escrevem a incumbência de (re)contar essa bela história pelo tempo.  o-bule - Mauro Siqueira



.